Crianças desaparecem próximas de suas casas – esse pesadelo pode acontecer a qualquer família, mas pode também ser evitadoPor Mariana Franco
Em revistinhas, cartazes, no verso dos recibos dos pedágios ou das lotéricas, em caixas de leite e e-mails, vemos fotos de crianças desaparecidas. Apesar de nos depararmos com essas evidências diariamente, achamos que esses dramas só vão bater na porta dos outros, não nas nossas. Anualmente 204 mil pessoas desaparecem no Brasil, sendo 40 mil só de crianças e adolescentes. Destes, cerca de 15% não retornam aos seus lares. Mas como, afinal, desaparece uma criança?
“Nem sempre, como se pode imaginar, o desaparecimento de uma criança é feito por um terceiro, um raptor. Muitas crianças saem de casa voluntariamente, em geral por problemas no ambiente familiar”, explica Gilka Gattás, coordenadora do Projeto Caminho de Volta, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
O Caminho de Volta realiza um trabalho de auxílio às famílias de crianças e adolescentes desaparecidos que tenham registro em Boletim de Ocorrência. O auxílio nas buscas é feito a partir de um rastreamento genético (DNA) da família para ser cruzado com as informações genéticas das crianças que são encontradas, para sua identificação. Além disso, trabalha com acompanhamento psicológico das famílias e das crianças, quando encontradas.
Como esclarece Gilka, grande parte dos desaparecimentos de crianças são casos de fuga, cujos motivos são complexos, mas são, em sua maioria, aliados a um convívio familiar conflituoso. É essa a explicação também da grande reincidência de casos de fugas – há registros de crianças que fogem de suas casas e retornam mais de quinze vezes.
Benedito Rodrigues dos Santos, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos do Governo Federal, realizou uma pesquisa com crianças que saíram de casa em São Paulo e em Nova York. Apesar das grandes diferenças entre os países, os resultados encontrados foram semelhantes.
“É o mau convívio familiar que leva essas crianças às ruas. Temos um verdadeiro descompasso entre a composição clássica de família e a realidade das famílias brasileiras. Vemos famílias recombinadas nas quais a distribuição de afeto é causa de conflitos, famílias com problemas de alcoolismo, drogas ou que utilizam a punição corporal como forma de educação cotidiana. Essas relações influenciam negativamente o desenvolvimento de uma criança”, afirma. Linamara Rizzo, médica também integrante do Caminho de Volta, lembra que “criança precisa de educação e escola, mas também de um convívio social e familiar bom para seu desenvolvimento”.
Parte dos desaparecimentos, porém, não se encaixa nos casos de fuga. São casos de real subtração por terceiros, e esses são muito difíceis de serem resolvidos. “São crianças que desapareceram em circunstâncias parecidas e das quais não se tem notícia por longo tempo. Desaparecem brincando na porta de suas casas, no caminho da escola ou da padaria sozinhas, sempre muito próximas de casa”, explica Ivanise Espiridião da Silva, presidente da Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças Desaparecidas (ABCD/Mães da Sé).
“As crianças que desaparecem são em geral de nível socioeconômico muito baixo, que passam muito tempo sozinhas, tornando-se alvos fáceis. Aquela mãe que tem três, quatro, cinco filhos e é mãe e pai deles, sai cedo para trabalhar e os deixa sozinhos em casa.
Alguém oferece uma carona ou pede uma informação a essas crianças e elas não têm noção do perigo que estão correndo”, continua.
Medidas muito simples de prevenção, como não deixar seus filhos saírem desacompanhados à rua, orientá-los para não conversar e não aceitar nada que estranhos lhes ofereçam, fazê-los memorizar seu nome completo, os nomes dos pais, endereço e telefone de casa, podem ser eficientes.
“Às vezes as dicas e orientações dadas às crianças parecem simples, banais, mas nos casos concretos verificamos que muitas crianças são subtraídas ou colocadas em situações de risco atraídas pela oferta de doces, brinquedos, presentes. A informação para esses casos é realmente essencial”, afirma Ana Cláudia Machado, delegada do Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas do Estado do Paraná.
O registro e busca de um desaparecido deve ser feito imediatamente. Existe uma subnotificação muito grande dos casos de desaparecimento – muitas famílias não chegam às delegacias, e muitas das que chegam não conseguem fazer o Boletim de Ocorrência. “Existe um mito de que se deve esperar algumas horas para fazer o BO, pois a criança pode estar na casa de algum amigo ou só perdida. Essas são horas preciosas que reduzem imensamente a chance de a criança ser encontrada com vida”, afirma a médica Linamara.
“Quando a busca não é imediata, se há espera de 12, 24 ou 48 horas, a probabilidade dessa criança não ser encontrada é muito maior. Se a delegacia se recusar a iniciar uma busca imediata, os pais devem buscar o Conselho Tutelar ou a Corregedoria de Polícia”, complementa Ana Cláudia.
A dor de um filho perdido
A filha de Ivanise, Fabiana Espiridião da Silva, desapareceu há 13 anos, quando tinha 14 anos de idade. Após o episódio, ela fundou a Mães da Sé para auxiliar outras mães que passavam pelo mesmo drama.
“Minha filha sumiu a 120 metros de casa. Nos primeiros meses após o desaparecimento dela eu estava chegando ao limite da loucura. Não dormia, não comia, só tomava café e fumava um cigarro atrás do outro. Passei uma madrugada procurando por ela pela Praça da Sé, na República, no Anhangabaú. Acontece que nós, enquanto mães, não estamos preparadas para perder nossos filhos. Estamos preparadas para que eles nos enterrem.
A dor de ter um filho desaparecido é muito maior do que a dor de ter um filho morto. Se eu descobrisse que minha filha está morta, teria um luto real. Teria saudades dela para sempre, mas teria certeza do que aconteceu. Mas eu não sei, e isso me incomoda o tempo todo. Hoje, minha filha está com 27 anos, e eu fico me perguntando: Como será que ela está? Será que engordou? Emagreceu? Se está viva, por que nesses 13 anos nunca deu notícias? Se morreu, por que o corpo nunca foi encontrado?
Acontece que quanto mais o tempo passa, mais a dor vai ficando só nossa. As outras pessoas vão esquecendo, vão tocando suas vidas, mas só as mães nunca vão esquecer. O sentimento acaba sendo só nosso. É um vazio, como se tivessem arrancado parte de mim, porque arrancaram realmente. É algo que não desejo a ninguém, e por isso é importante a prevenção, por parte dos pais, das escolas e da comunidade.
Nos 13 anos de trabalho da Mães da Sé, 2.122 pessoas foram encontradas. Delas, 196 foram meninas encontradas mortas. Eu digo a essas mães: ‘Pelo menos sua busca terminou, você sabe o que aconteceu’. Mas em cada uma dessas pessoas que nós encontramos, minha Fabiana vive um pouquinho. Essas mães são muito importantes. Nós formamos aqui uma família, unida pelo mesmo sentimento e pelo mesmo objetivo”, relata.