quinta-feira, 26 de julho de 2007

Beatles, morangos e fones de ouvido

Ele fechou os olhos e perdeu então a imagem da mesa cheia de garrafas e pratos vazios e de bolinhas de guardanapo espalhadas; o cenário da recente guerrinha de comida. Pegou sua garrafa de coca e virou o restinho num gole. Era sempre assim depois que todos iam embora: o que ficava com ele era um tipo de devastação parecido com o da mesa da lanchonete. Arrumou os fones de ouvido e aumentou o volume (que bom era sair da Beyoncé que tocava no lugar pra ouvir Beatles!). Recostou-se na cadeira e fechou os olhos, sentindo cada frase. "Living is easy with eyes closed..." Abriu os olhos. Alguém devia ter vindo limpar a mesa enquanto ele não olhava. Pensou que poderia ser como nos filmes em que a garçonete gostosa vem limpar a mesa e dá o maior mole. Virou-se na cadeira para procurar a tal garçonete, mas só achou atrás do balcão o chapeiro careca e barrigudo e a sua filha igualmente gorda e cheia de espinhas. Voltou ao lugar original concluindo que garçonetes gostosas como as de filme americano não deviam ser encontradas facilmente em lanchonetes de cidades do interior.
Passou os olhos pelos poucos clientes que estavam ali àquela hora da tarde. Todos parecidos com as mesmas pessoas que se via nas ruas, nos carros, nas lojas. Todos com a mesma mentalidade. Todos, exceto.... Seus olhar recaiu sobre uma garota numa mesa ao fundo do estabelecimento. Ela estava sentada com as costas apoiadas na parede e os pés em cima da outra cadeira. De costas, só era possível ver seus cabelos ondulados, um tantinho bagunçados, caindo sobre os ombros. Intrigado, deixou sua mesa e foi sentar-se em uma de onde poderia observá-la. Ela apoiava no joelho um grosso livro no qual parecia mergulhada, usava também fones de ouvido e brincava sem olhar com o canudinho dentro do copo que tinha só um restinho de suco. As mexas de seu cabelo caíam sobre o rosto. Pendurada na cadeira, uma mochila, entreaberta. Em cima da mesa, além do copo de suco vazio, um papel de chocolate, algumas folhas de caderno, um lápis e um celular bastante judiado, provavelmente por diversas quedas. Num gesto despreocupado ela puxou o cabelo que lhe caía sobre os olhos e ele pôde então observar melhor seu rosto. Tinha a testa alta e sobrancelhas grossas. Os olhos que pareciam grandes se amiudavam, como num esforço para ler. O nariz terminava arredondado, um tantinho grosso, e os lábios rosados se destacavam na pele branca como leite e cheia de pintinhas. Ela parecia deslocada do lugar e indiferente a tudo que a cercava. Ele não saberia dizer quanto tempo ficou observando-a ali.
Seu celular vibrou em cima da mesa e ela como que desperta de um transe o apanhou e verificou o número. Com desânimo estampado no rosto ela retirou um dos fones do ouvido e atendeu a chamada. Ouvia muito e respondia com monossílabos. Terminada a chamada, largou o celular sobre a mesa, recolocou o fone no ouvido. Mexeu em alguns botões do MP3, provavelmente aumentando seu volume. (que bom era sair do Justin que tocava no lugar pra ouvir Beatles!) Recostou-se na cadeira e fechou os olhos, sentindo cada frase. "Living is easy with eyes closed..." Abriu os olhos. E deparou-se surpresa com um garoto fitando-a fixamente. Sustentando o olhar ela reparou que ele usava também fones de ouvido e parecia estranhamente deslocado do lugar e indiferente a tudo que o cercava... a não ser ela.
Sorriu. Sorriram.
Ele pensou em levantar, dizer alguma coisa, mas as pernas pesaram. Ela juntou suas coisas, foi até o caixa, pagou sua conta, e foi embora caminhando.
Ele, novamente sozinho e devastado, arumou os fones de ouvido e aumentou o volume, recostou-se na cadeira e fechou os olhos, sentindo cada nota da música. Foi desperto porém pela filha do chapeiro, gorda e espinhenta, que lhe entrgou um papelzinho. "Aquela menina estranha deixou aí pra você." Ele atordoado, leu as palavras naquela letra espremidinha a lápis: "strawberryfieldsforever@hotmail.com "

terça-feira, 17 de julho de 2007

Trânsito na Marginal

O barulho de buzinas e motores tomavam conta da marginal parada, debaixo de chuva. Eu voltava meio despedaçada: desde o da minha vó evitava velórios, mas não poderia deixar de estar lá lhe dando força naquele momento. Ele dirigia calado e parecia perturbado - mas mesmo assim fazia questão de ir dirigindo.
Bruscamente, como que jogando tudo pro alto, cortou dois carros e virou na primeira esquina, derrapando ao parar o carro. Não posso mais com isso! Debruçou-se sobre a direção com as mãos tapando os ouvidos e as lágrimas oprimidas por toda tarde finalmente rolaram. A dor da perda. Apoiei a mão em sua nuca. Estou aqui! Mesmo despedaçada tentava acalmá-lo. Reafirmei que estaria sempre a seu lado, o ajudaria a reorganizar a vida.Apoiado em meu peito, sua respiração já se normalizava. Disse, secando seus olhos, que quando precisasse de silêncio e calma saberia onde levá-lo. Ele me apertou num abraço. Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio. E mais uma vez fomos engolidos pelos motores e buzinas da marginal.