quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A vitória da memória sobre a amnésia

Após 100 anos de sua morte, a obra de Euclides da Cunha ainda recende atualidade e pioneirismo no estudo do Brasil

Matéria da Revista Espaço Aberto, 6 de agosto de 2009
Por Mariana Franco
Neste 15 de agosto, completam-se 100 anos da morte de Euclides de Cunha. Conhecido por seu livro Os Sertões, que se reporta ao episódio da Guerra de Canudos, seu trabalho é importante não só para a literatura brasileira, mas também para outras áreas do conhecimento como história, sociologia, jornalismo, geografia, geologia e botânica.

Euclides da Cunha é natural de Cantagalo, interior do Rio de Janeiro, nascido em 1866. Com a morte da mãe quando tinha apenas três anos, passa a peregrinar pelas casas de diferentes parentes, entre a Bahia e o Rio de Janeiro. Foi militar e engenheiro de profissão. Por nunca ter se estabilizado em uma só cidade e ocupação, ele mesmo considerava sua profissão a de “engenharia errante”.

Ardorosamente republicano e desde a mocidade chegado às letras, trabalhava como engenheiro, mas também escrevia para O Estado de S. Paulo. Quando surge, em 1897, a insurreição em Canudos, é para lá enviado pelo jornal como correspondente de guerra.

Voltando a São Paulo, após ter presenciado os horrores dos quatro meses finais do combate, ele se encontra extremamente desiludido com a República. Cinco anos depois, traz a público o que seria uma vingança do povo sertanejo massacrado na guerra, uma vingança própria contra a República que tanto o decepcionara e contra o exército, do qual fizera parte: Os Sertões.

O livro, para explicar o episódio da guerra, parte de uma observação de todo o Brasil, em seus aspectos físicos e sociais, até a análise do povoado de Canudos e das idas e vindas da batalha. É, neste ponto, o primeiro estudo que se volta para o interior do Brasil, para as camadas mais baixas da sociedade e, a partir daí, abre uma vereda para todo estudo e literatura posterior.

Monteiro Lobato foi o primeiro escritor a reconhecer sua grandeza, dizendo: “Euclides analisou um drama da crueldade, Canudos, mas existiram muitos outros dramas da crueldade no Brasil e infelizmente não tivemos outros Euclides”.

“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o completo esgotamento. (…) Caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5.200 soldados.” (trecho do último capítulo de Os Sertões)

A carga científica de Os Sertões, influenciada pelo determinismo da época, se mostra racista e ultrapassada, mas a atualidade da obra se expressa pelo pioneirismo e pela denúncia. “O pensamento das pessoas na época voltava-se só para a Europa. Sem Euclides, não teríamos Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa” afirma Nicola de Sousa Costa, professor de história, estudioso de Euclides da Cunha e há 15 anos conferencista do Ciclo de Estudos Euclidianos, de São José do Rio Pardo – SP, cidade onde viveu o autor.

Euclides da Cunha tinha planos de escrever um segundo livro vingador quando voltou do Acre, em 1905, onde chefiara a expedição de reconhecimento do rio Purus e delimitação de fronteiras entre Brasil e Peru. Em pleno ciclo da borracha, ele percebe que o mesmo sertanejo que encontrara antes em Canudos, ali agora trabalha como seringueiro, preso à terra e às dívidas. Definiu-o como “o homem que trabalha para escravizar-se”. O novo livro seria Um Paraíso Perdido, do qual temos apenas alguns textos, dentre os quais o conto “Judas Asvehrus”, que com verdadeira poesia em prosa, retrata a situação de amargura da vida do seringueiro.

Cunha volta da Amazônia com malária e tuberculoso, sem emprego estável, e com problemas conjugais. Torna-se um homem extremamente amargurado, e isso influencia sua vida pessoal e intelectual, acabando por não finalizar seu segundo livro. Mês e meio antes de sua morte, em junho de 1909, expressa sua desilusão com o País em uma carta pessoal ao historiador Oliveira Lima, dizendo: “Ninguém lê, ninguém escreve, ninguém pensa no Brasil”.

“Euclides denunciou um massacre de grandes proporções. Tentaram esconder o que foi feito em Canudos com um incêndio e um açude construído em cima da cidade. Mas não imaginavam que aquele repórter contaria a história. A vitória de Euclides foi uma vitória da memória sobre a amnésia. Hoje ainda temos massacres, carandirus, candelárias, mas só não temos maiores massacres porque houve a denúncia daquele”, finaliza Costa.

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